terça-feira, 27 de outubro de 2015

Entrevista: Clotilde Tavares

No dia 28 de setembro a escritora potiguar: Clotilde Tavares, concedeu uma entrevista do grupo PET  - Literatura no RN. Confira abaixo:


PET: Boa noite Clotilde, seja bem-vinda à Universidade Potiguar e ao PET. É um prazer tê-la aqui. Você nasceu e se criou em uma família de poetas e músicos, sempre cercada de manifestações artísticas e rica vivência cultural. Gostaríamos de escutar um pouco sobre essa vivência. 



Clotilde Tavares: 
Gente, eu fui criada em uma casa onde todo mundo lia. Meu pai era jornalista e poeta, meu avô também era jornalista e poeta. Minha mãe era do lar como se diz, mas também gostava de ler e falava muito sobre o que lia e eu nasci nesse meio. Meu pai nunca obrigou a gente a ser isso ou aquilo, mas esperava que nós fôssemos ligados  às letras, e ensinou a mim e a meu irmão, quando éramos pequeninos, a dizer que quando crescêssemos  a gente seria intelectual, isso eram coisas típicas de papai. Enfim, o que acontece é que eu sempre li muito, minha formação foi se diferenciando um pouco da do meu irmão. O Bráulio foi se interessando por certos temas, por exemplo, muito por cinema. Eu entrei no cine clube com ele, mas ele continuou no cine clube batalhando pelo cinema, e eu sai. Fui me direcionando para determinadas coisas, para determinados temas e eu sempre gostei muito de ciência, nunca tive dificuldade com matemática, ninguém nunca me disse que era difícil matemática. Eu ainda sou muito boa em matemática, eu sou boa com computadores, com maquinismo, com coisas mecânicas e com raciocínio lógico. Enquanto Bráulio se direcionou para o lado mais abstrato, para o lado da crítica, da filosofia. Eu fico mais no lado ,digamos assim, prático das coisas. Eu estou fazendo essa comparação com Bráulio meu irmão, porque ele é um escritor muito conhecido e talvez muitos de vocês conheçam o trabalho dele.  
No filme sobre Raul Seixas, quem abre o filme é Bráulio, falando sobre Raul Seixas, então o que acontece é que ele se direcionou mais para esse lado mais abstrato e escreve muito sobre filosofia e considerações sobre as coisas. Eu não, eu sou mais uma contadora de histórias. Eu posso ser até mais profunda, quando quero. Resumindo, enquanto Bráulio estava indo para Belo Horizonte estudar cinema, eu vim para Natal estudar medicina.




PET: Durante esse período sempre manteve relação com a literatura ?

Clotilde Tavares: Sim, nunca deixei de escrever, nunca deixei de fazer teatro e sempre fui ligada à musica.


PET: Isso é positivo, pois quebra um pouco a crença de que o pessoal da área da saúde ou das ciências exatas não costuma manter uma boa relação com a leitura e a escrita literária. 

Clotilde Tavares: Tem muito médico escritor, talvez na medicina e no direito seja onde tem mais escritor do ponto de vista profissional.  Vou explicar por quê. O médico está em contado com o humano o tempo todo, então ele sai dali, o que você ouve e vivencia dentro do consultório médico ou em um pronto socorro mexe com você, faz com que você fique com vontade de escrever, se você tiver alguma tendência artística.  Alguns exemplos são Guimarães Rosa, que era médico, Pedro Nava que também era médico, e eu poderia citar muitos e muitos outros escritores.
Estudei medicina e me formei. Quando cheguei, mais ou menos, no meio do curso eu optei por saúde pública, que tinha haver com a parte social e nessa área eu trabalhei durante muitos anos, participei dos primeiros grupos profissionais de saúde nesta cidade que construíram e implantaram o SUS. O SUS não apareceu do nada, nem sempre ele existiu. Depois de formada como médica, eu trabalhei mais de 20 anos, trabalhava como médica e como professora da universidade. Eu ensinava a disciplina de saúde coletiva, para o curso de medicina e para o curso de nutrição. Na semana passada, entrei em um consultório de um médico e, quando ele me viu, gritou “minha professora querida!!!”. Eu nem me lembrava do rapaz, e ele agora vai me operar, olha que coisa linda!!!!. Então, após anos de trabalho como médica, eu comecei a ficar decepcionada porque trabalhava com  uma área  muito delicada  que é a da saúde publica que é misturada  com a politica. Então aquilo começou a me frustrar, porque é triste trabalhar seis anos fazendo um projeto para uma complementação alimentar de famílias pobres no estado do Rio Grande do Norte e apresentar para o secretario, que  olha assim e diz: olhe para esse município aqui não vai não, nem para esse, nem para esse, nem para esse, nem para esse, porque esse prefeito aqui é do PFL, esse aqui é PMDB e eles não votaram com a gente. Então você se pergunta “o que eu estou fazendo aqui?”. Papel de idiota. Ai essas coisas começaram a acontecer, comecei a ficar decepcionada e me mudei para o departamento de artes para substituir o professor de Deífilo Gurgel que tinha se aposentado da disciplina de folclore. Eu gostava muito de folclore e tinha um conhecimento muito grande, era chamada para fazer palestras, então fui ensinar folclore no departamento de artes. Então passei dez anos no departamento de artes, até completar meu tempo e me aposentei em 2002. Pronto, uma breve Historia. 


PET: Clotilde, você consegue escrever em vários gêneros para diversos públicos. E sobre filosofia e muitos outros assuntos. Poderia comentar essa sua polivalência na escrita?

Clotilde Tavares: Na faculdade eu produzi muito trabalho científico, publiquei muito, muitas revistas cientificas publicaram meus trabalhos. Fiz tese de mestrado e publiquei muito em revistas conceituadas, o ministro Garibaldi foi fazer um discurso e citou um trabalho meu, e eu nem me lembrava desse trabalho, feito quando eu era médica. Eu tenho facilidade de transitar, eu gosto de dizer que sou uma escritora profissional, no sentido que escrevo qualquer coisa, qualquer coisa que você me encomendar, se você me pagar. Se você disser: “Clotilde, vovô (que deus nos livre!) morreu e a família quer que eu vá falar na hora do velório, eu não tenho ideia do que dizer. Você escreve para mim? Quanto é?” Eu digo é tanto. Então, me sento na hora e escrevo o que você está precisando. Já escrevi até documento legal, como petição, decreto, lei, discurso e outros.


PET: Sendo uma escritora profissional, o que te dá prazer em escrever ?
Clotilde Tavares: Gosto de contar minhas histórias. Gosto de escrever crônicas, meu próximo livro será de crônicas. Fui cronista da Tribuna do Norte durante dez anos. Escrevi na revista RN econômico, durante quatro anos, em uma coluna sobre internet chamada “httpwww”, em uma época em que poucas pessoas sabiam o que era internet. Escrevi no Jornal de Natal, no Jornal de hoje, entre outros jornais de Natal, durante muito tempo. Então eu produzi muitas crônicas. Em 2006, eu criei um blog “umaseoutras.com.br” e nesse blog tenho mais de 400 textos publicados. Fiz um apanhado de 200 desses textos e eles  selecionarei entre cem textos ou menos e publicarei um livro de crônicas. 

PET: Aproveitando que estamos falando de sua versatilidade, o pessoal do curso de História menciona você, de vez em quando, em sala de aula. Ressaltando o seu livro que conta a história do RN para crianças. Como que surgiu esse trabalho?

Clotilde Tavares: Esse livro foi publicado pela editora Cortez, ele se chama Natal, noiva do Sol, ele foi uma encomenda da editora. O pessoal da Cortez me ligou pedindo um livro para crianças de sétima e oitava série, contando a história de Natal, em primeira pessoa, que tenha 900 palavras. Então, essa é a história desse livro. Eu conheço bem a história de Natal e do Rio Grande do Norte, porque sou apaixonada por história colonial brasileira. Eu adoro História e sempre estou lendo História da idade média. Gosto muito dos romances passados nesse período. Gosto muito, também, de fazer genealogia. Eu sou titular da cadeira 23, do Colégio Brasileiro de Genealogia. 


PET: Clotilde, você se intitula uma contadeira de história. Nessa entrevista, gostaríamos de conversar sobre dois livros seus A botija e O monstro das sete bocas. O livro A botija foi publicado em 2003 e escolhido pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) 2010, que distribuiu livros para as bibliotecas das escolas públicas em todo o país. A obra ganhou também o prêmio literário Câmara Cascudo, da Prefeitura de Natal. A botija também faz parte do box Letras Potiguares, lançado pela A.S Editores, que possui outros nove livros antológicos de nossa literatura: Polycarpo Feitosa, Franco Jasiello, Newton Navarro, Magdalena Antunes, Tarcísio Gurgel, Jaime Hipólito, Eulício Farias de Lacerda, Iaperi Araujo, e Pablo Capistrano são os outros nomes da coleção.  A botija-narrativa que entrelaça três histórias fantásticas-encanta leitores de diversas idades. Amor, coragem e aventura estão sempre presentes nas várias narrativas.

Clotilde Tavares: A botija foi publicado primeiro nesse box. Após ganhar o prêmio literário Câmara Cascudo, pela primeira vez recebido por uma mulher, o livro foi escolhido pela A.S editor e publicado nesse box. 


PET: Clotilde, você acredita em botija? Como consegue conciliar suas concepções filosóficas e científicas com as crenças da cultura popular?

Clotilde Tavares: A botija é uma realidade, pois na época colonial não havia bancos, então as pessoas escondiam o dinheiro em casa. Geralmente as pessoas escondiam nas paredes da casa, em buracos no chão. As pessoas escondiam patacões de ouro, moedas e joias. Muitas dessas pessoas, que enterravam as botijas, morriam, se mudavam ou esqueciam. Em determinadas épocas, as pessoas enterravam o
dinheiro com medo dos cangaceiros, de Lampião ou ladrões. Por outro lado, há toda uma cultura, um imaginário construído em torno da botija. Em muitas histórias de botija, há uma pessoa que sonha com o dono que diz onde ela está e que  tem de desenterrá-la sozinho, não podendo contar a ninguém, tem de desenterrá-la à noite e sozinho ou a botija virará carvão. Há várias formas de se interpretar esse aspecto cultural. Podemos pensar que um indivíduo viu seu avô enterrando a botija e quando cresce pensa ter sonhado com ela. Dessa forma, quem sonha é quem tem o direito ao tesouro e não o herdeiro direto, ou seja, o filho. 


PET: Meu pai costuma dizer que isso é história de um sabido que via o dono enterrando e se aproveitava para se dar bem. 

Clotilde Tavares: Exatamente. Tem uma casa do fim do século XVI ou XVII, em uma cidade do interior da Paraíba chamada Olivedos, perto de Soledade, que é toda esburacada, porque as pessoas achavam que havia botijas enterradas ali. 


PET: A aventura e o mistério são aspectos marcantes em suas histórias.  Em seus livros, alguns tipos em particular nos chamaram atenção: a donzela indefesa, o viajante sonhador e a mulher de garra. Uma de suas personagens chamou nossa atenção: a Gipsy. Como ela surgiu?

Clotilde Tavares: A Gipsy é uma cigana, ela é meu alter-ego.  A Gipsy sou eu, no seguinte sentido: eu queria fazer uma peça de teatro contando A botija. Escrevi tudo, criei as cenas, mas não foi possível encená-la na época. E essa história ficou me incomodando, porque as histórias são como um segredo, uma dívida ou algo que você sabe sobre alguém e não pode contar para ninguém. Aquilo fica te angustiando.  Então comentei para Marcos Bulhões sobre minha angústia e ele me recomendou que encenássemos somente a história do pavão misterioso.  Então quando fui fazer a adaptação do folheto de cordel Pavão misterioso de José Camelo de Melo Rezende , percebi que ela é uma historia tão bem feita, sendo dramaticamente bem construída, que não precisava adaptar, é um crime mexer nesse cordel.  Dessa forma, eu criei apenas uma moldura para contar a história. A moldura era essa: ciganos chegavam na cidade e o povo pedia para que eles contassem umas historia. Nesse momento, a Gipsy, eu mesma, iria contar a história, e os outros ciganos representavam a história.  A peça foi representada. Mas o resto da história de A botija ainda ficou me perturbando para ser contada. Então, um dia precisei entreter uma criança para que ela dormisse. Assim, contei a história de Pedro Firmo, mas o menino não dormiu. Então eu foi tecendo outras histórias na narrativa de Pedro Firmo, assim ficaram várias narrativas em uma só. Dessa forma, eu pensei que a história era muito boa, porque o menino ficou muito entusiasmado com a história e não conseguiu dormir.  Então eu comecei a escrever A botija.  Havia um trecho no qual a personagem Pedro Firmo precisava contar uma história, mas isso não fazia parte de sua personalidade. Ele era um homem calado, solitário e tímido, como iria contar uma historia em praça pública para muitos estranhos? Então Gipsy aparece do nada, para ajudar Pedro Firmo. Então ela desaparece como surgiu, de repente, só aparecendo para encerrar a história. Gipsy é uma criação na qual fui muito feliz.  Há até tese de mestrado sobre A botija só por causa de Gipsy. 


PET: Os dois livros, A botija e O monstro das sete bocas, são parecidos, pois em ambos há um entrelaçamento de narrativas, isso os deixa muito gostosos de serem lidos. 

Clotilde Tavares: Eu gosto muito disso, é como se fosse As mil e uma noites, mas As mil e uma noites não têm fim, já minhas histórias gosto que tenham fim.


PET: Algo que acho interessante é o sonho, o tesouro que o Pedro Firmo vai procurar e que acaba encontrando em casa. Lembro-me de ter lido uma historia parecida no livro Do fundo do poço se vê a lua do Joca Reiners Terron. 

Clotilde Tavares: Outros escritores também escreveram historias parecidas, como em O alquimista de Paulo Coelho e Jorge Luiz Borges. Um escritor belga chamado Maurice Maeterlinck, ganhador do prêmio Nobel, tem uma peça chamada Opássaro azul. Nessa peça, crianças buscam o pássaro azul para curar sua avô doente, mas no meio da viagem eles descobrem que o pássaro azul, que tanto procuravam, era aquele que eles tinham em casa na gaiola.  Então, essa história da pessoa que sai daqui para buscar o tesouro em outro lugar, e quando chega a outro lugar descobre que o tesouro estava com ele é uma metáfora da viagem que cada um de nós tem de fazer em busca de si mesmo. O Jung fala exatamente isso: viagem de individuação. Quando a pessoa se torna um individuo. Para você se tornar você, terá de se relacionar com o mundo e com o outro. Quando eu chego a determinado ponto e volto, nesse momento me encontro comigo. 


PET: Gostaríamos que falasse sobre O monstro das sete bocas e como surgiu a ideia de escrever essa história. 

Clotilde Tavares: As histórias estão por ai, a qualquer momento a inspiração surge. Olhando para cada um de vocês posso imaginar uma história. Minha mente vive imaginando histórias, quando são interessantes, eu as escrevo. Às vezes não posso escrever, mas gravo o que penso e depois transcrevo.  Para os nomes de personagens, utilizo nome de amigos, familiares e personagens da literatura.  Todo o processo de escrita do monstro das sete bocas durou quatro anos, o que não é comum. Normalmente me sento, vou escrevendo e inventando as coisas. De início faço um roteiro e só após isso começo a escrever a historia.  Alguns
personagens de A botija têm nomes de familiares meus, como Quirino (meu avô), Renovato (bisavô de um amigo), Ana Francisca (terceira avó), o poeta Samuel Romano tem a descrição física do meu pai, foi baseado nele. Já o personagem Juvenal, vem de Juvenal e o dragão, folheto antológico da literatura de cordel. 


PET: O livro, O monstro das sete bocas, apresenta uma relação com acontecimentos reais, como a formação do grotão sombrio, onde morava o monstro, com o vazamento de uma usina nuclear.  

Clotilde Tavares: Foi exatamente o que ocorreu. Eu tinha que justificar como aquela região ficou degradada, porque eu queria tocar nesse tema ecológico. Dessa forma, eu fiquei pensando como fazer essa justificativa, pois não posso fugir da verossimilhança interna da história. Após uma visita a um museu em Belo Horizonte, no qual eu vi alambiques enormes, decidi colocá-los em minha história. Então pensei: esses alambiques vão destilar venenos que infiltrarão no solo e contaminar as nascentes. Tive essa ideia vendo o acidente nuclear de Fukushima.  Após o nosso herói, Juvenal, vencer o mostro e cessar a causa, a região volta a ser frondosa e verdejante outra vez. Uma das cenas mais belas é essa. 


PET: A adivinhação é algo que chama muito a atenção dos leitores. Como você a criou?

Clotilde Tavares: Nossa, ela me deu muito trabalho, pois eu não queria colocar algo muito conhecido. Então eu quebrei muito minha cabeça, li O homem que calculava, de Malba Tahan que é cheio de adivinhações. Li muitas adivinhação, pesquisei na internet, mas nada me satisfazia. Aí meu filho, um homem muito inteligente, que vive do que escreve sem ser escritor, ele é publicitário, um dos grandes redatores de Natal. Então eu perguntei a meu filho se ele conheceria alguma adivinhação bem difícil. Ele me disse a adivinhação que está no livro e me deu uma semana para resolver. Eu fiquei muito ansiosa, não resolvi e liguei para ele várias vezes pedindo a resposta. Após uma semana ele me disse. Então decidi colocá-la no livro, mas eu que fiz os versos, para ficar elegante. 


PET: O papo está muito bom, mas o nosso tempo está acabando. Eu gostaria de agradecê-la, foi uma honra para nós tê-la aqui. Obrigado pela simpatia.

Clotilde Tavares: Também estou agradecida pelo convite. 

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