quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Entrevista: Gisele Werneck e Rinaldo de Fernandes


O projeto Cais da Leitura e o grupo PET – Literatura do RN, em parceria com o selo Jovens Escribas, receberam os escritores Gisele Werneck (MG) e Rinaldo de Fernandes (PB) para uma conversa com alunos do 4º Centenário e estudantes do curso de Letras da Universidade Potiguar – UnP. Gisele Werneck, que também é atriz e roteirista, estava de passagem por Natal acompanhando o seu marido, Danilo Perrotti, que está dando a volta ao mundo de bicicleta, e foi convidada por Carlos Fialho, escritor potiguar, para um bate-papo sobre literatura ao lado de Rinaldo de Fernandes, Doutor em Teoria e História da Lliteratura pela UNICAMP, e professor da UFPB que veio lançar o seu livro de contos O professor de piano, pela 7Letras. Gisele também estava divulgando o seu mais recente romance, Onde Judas Perdeu as Botas, pelo selo Que Viagem. Na ocasião, os bolsistas do grupo PET – Literatura do RN, Canniggia Carvalho e Liliane Tavares, alunos de Letras do 4º período, entrevistaram os dois escritores.
Foto: Fernanda Grigolin

PET: Como surgiu o seu interesse pela Literatura e quando se descobriu escritora?

Gisele Werneck: Eu venho, como todo escritor, da leitura. Sempre li. Essa coisa de ser mineira, a casa sempre cheia de livros de autores mineiros, como Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino. Na verdade, eu nunca pensei em ser escritora, eu tinha outros planos para o meu futuro. Sempre fui mais ligada à área da cena, a minha formação é em teatro, só que eu tinha uma necessidade expressiva muito grande, tinha que estar sempre criando. Tem até uma cena do filme Contos Proibidos do Marquês de Sade, que ele escrevia com o que tinha, com sangue, com vinho, e eu tinha uma necessidade expressiva que o teatro não supria, então, desde muito nova, eu anotava poesia, fazia um conto, até que um dia eu pensei: “vou fazer um romance”. Eu já tinha escrito uns contos, e fluiu muito, e as pessoas diziam que eu tinha fôlego para um romance, então, eu comecei a escrever. Eu sou ficcionista, eu gosto de escrever, no máximo, conto, poesia eu não me arrisco.


PET: Sobre os seus personagens. Como eles nascem? Você já levou algum deles para as telas?

Gisele Werneck: Sim. Eu venho da área da cena e do teatro, do cinema, e eu fazia curtas que eu mesma escrevia, dirigia e atuava, então eu já sabia como o personagem ia falar. Sempre escrevo personagens femininos e, com o livro Onde Judas Perdeu as Botas, eu fiz o meu primeiro personagem masculino, o que foi um grande desafio para mim. Foi bem legal, acho até que cresci como pessoa, alimentei o meu lado masculino. Eu parto para escrever de sensações minhas. Até admiro autores que partem para escrever de algo bem distante, porque eu parto de um motivo interno, uma pergunta sobre a vida, algo que me mova, é assim que eu crio o personagem.

PET: E as suas influências na escrita?

Gisele Werneck: Eu acho que isso é vivo, vai mudando. Eu comecei com muita influência da Clarice Lispector, Jean Paul Sartre. Li Sartre quando tinha 13 anos e a minha tia, que é pedagoga, falou para o meu pai: “isso não vai ser bom para ela” (risos). Foi uma influência muito existencialista para mim. o existencialismo foi uma influência muito importante para mim. Depois, um pouco mais velha, já fui para uma influência de linguagem, comecei a ler formas que me interessavam, como Julio Cortazar, e o próprio Guimarães Rosa que tinha os dois: a forma, que é fantástica, e a vibração interna “da coisa”, a filosofia mesmo. Eu acho que é isso.

PET: Como surgiu o romance Onde Judas perdeu as botas?

Gisele Werneck: Onde Judas perdeu as botas vem da coleção “Que Viagem”. O Marcelino Freire chamou dez escritores para viajar a lugares onde só escritores podem ir, e ele me convidou para ser a primeira. Ele falou que eu podia escolher o destino que eu quisesse. Podia ir para o fundo do poço ou até para o inferno. E eu quis ir pra onde Judas perdeu as botas porque o assunto que me move é o assunto religioso, histórico, cultural, assuntos da humanidade em geral.

PET: Essa é a sua linha, os temas que envolvem religião, cultura?

Gisele Werneck: Eu ainda estou aprendendo a ver o que eu mesmo escrevo, eu não sei se isso é uma linha, agora é que eu estou começando a observar que isso me move muito, esses assuntos do “macro”, temas religiosos, de culturas, civilizações.

PET: Fale-nos um pouco sobre os seus outros títulos.

Gisele Werneck: O Guerreiras de Gaia, um romance juvenil, de 2006, surgiu num momento em que eu nem pensava em ser escritora. É como hobbie. Tem gente que joga tênis, e eu fui escrever um livro (risos). Nessa época eu já lia muito sobre mitologia, teosofia, os mitos do mundo, e o título foi por causa disso, o livro conta a história de cinco garotas que fazem um treinamento de guerra para salvar o planeta, Gaia (a mãe terra para os gregos). Aí vem o Onde Judas Perdeu as Botas, que partiu desse meu questionamento do sentido da vida, que a morte é algo que fica soprando no meu ouvido: “nós vamos morrer”. E eu criei esse personagem que já teve e experimentou de tudo bom e ruim, até que ele cansou, descobriu que só ia encontrar um sentido se ele inexistisse, que não é morrer, é inexistir. E ele não queria mais ter que existir, evoluir, melhorar, e descobriu esse lugar “Onde Judas Perdeu as Botas”, que é tão longe que nem existe. Então, eu faço um guia de viagem para inexistir, um passo a passo para a inexistência. E agora eu estou com um romance novo, que ainda não foi lançado, escrito pela bolsa de criação da Funarte, que se chama A queda da Machamba. Fala de uma menina que cresceu numa fazenda em Minas Gerais, que sofreu um trauma e vai morar em Londres. Ela tem uma vida “perdida”, e faz uma viagem pelas antigas civilizações do mundo, Egito, Grécia, Turquia. Quanto mais ela viaja pelas ruínas, mais ela viaja em direção ao passado, e vai entrando em Minas Gerais, naquela geografia fazendeira, até que chega ao ponto que a rompeu em duas. PET: A escrita foi conseqüência do teatro ou o teatro foi consequência da escrita?

Gisele Werneck: A escrita foi conseqüência do teatro. A escrita me deu uma liberdade muito grande, o que, em compensação, me trouxe solidão. Porque a escrita é um ato “só”, e isso, às vezes, me dá muita angústia, eu e o computador e o computador e eu. É um pouco angustiante.

PET: Fale um pouco sobre a sua experiência como atriz.

Gisele Werneck: Eu comecei como atriz de teatro e fiz um curso técnico de cinema, e o audiovisual sempre me puxou. Fiz também televisão, novela, durante quatro anos. Até que veio aquela fase da vida em que a gente fala: “vai acontecer alguma coisa comigo, a minha vida vai mudar radicalmente”, e desde a última novela que eu fiz, a minha vida realmente mudou, e hoje eu vivo de escrever, atuando muito pouco, na verdade. Só quando é uma coisa que me chama, que me move.

PET: No seu site você se intitula viajante. De que forma essas experiências são incorporadas nas suas atividades artísticas (literatura, cinema)?

Gisele Werneck: Eu já tinha reparado que os filmes que eu fiz eram sempre filmes em movimento, é raro eu fazer uma história parada, eu estou sempre em movimento, e o meu marido é um viajante, deu a volta ao mundo de bicicleta, coisa que eu não teria coragem de fazer por minha conta. Com isso, eu conheci muitos lugares. Depois eu li a biografia da Clarice Lispector, e vi que ela viajava bastante com o marido dela que era diplomata, o Guimarães Rosa que também era diplomata, e eu acho que isso realmente te enriquece, porque você relativiza tudo. Como a Índia que é outra cultura, outros deuses. Você aprende a enxergar melhor a sua realidade, acho que isso alimenta muito a criatividade.
Segue a entrevista com o escritor Rinaldo de Fernandes:

PET: Por que escrever?


Foto: Arquivo
Rinaldo de Fernandes: Escrever é, antes de tudo, uma necessidade. Necessidade de ordem existencial, filosófica, moral e até orgânica. Quem escreve de verdade, escreve com a alma e com o corpo, assim como o faz o bom leitor. O bom leitor lê com toda a atenção do mundo – é, realmente, quase uma leitura com o corpo. O ato de escrever pressupõe isso, a resolução de problemas que envolvem desde uma fantasia poética, um dado fantasioso que se impõe como imagem, até a comunicação de idéias, de pensamentos. O escritor quer sempre passar uma mensagem de ordem histórica, social, filosófica, estética, etc. Escrever requer muita verdade, pois a criação talvez seja o ato mais puro do ser humano. Escrevendo você atinge as pessoas, mexe com os dados obscuros da alma humana – e isso deve ser tratado com honestidade, com cuidado, enfim, com muita verdade. Se não há verdade, o leitor sente. E escrever é, efetivamente, uma vocação – vocação como chamamento. Você é chamado, com sua sensibilidade, com suas inclinações mais profundas, para estabelecer uma visão das coisas através da escrita. Eu acredito que a força da literatura reside na verdade. Ninguém escreve por diletantismo, por pura vaidade. Se o faz, a coisa não fica, não tem força, pois, repito, não transmite verdade. Não que a vaidade não atinja todos nós, inclusive os escritores. Todo escritor é vaidoso, mas, para o verdadeiro escritor, o ato de escrever é muito mais profundo do que isso.

PET: Existe o momento ideal para a escrita? Como você cria?

Rinaldo de Fernandes: No meu caso, existem alguns mecanismos desencadeadores da criação. Certa vez, tive um impulso criativo, entrei correndo num supermercado para comprar um caderno e nele registrar as imagens e primeiras cenas que deram origem ao conto “Procurando o carnaval”, que consta do meu livro O perfume de Roberta, de 2005. Foi uma experiência intensa, obsessiva, de transe mesmo. Outra vez, quando escrevi o conto “Rita e o cachorro”, fui tomado por uma imagem forte, por uma atmosfera mágica (é esta a palavra). Eu estava em casa numa noite de sábado, sentado no sofá com a minha mulher, quando ela disse a seguinte frase: “aquela minha amiga, quando se separou do marido, foi para Santa Catarina, morar numa praia com um cachorro”. Fui assaltado pelo ambiente da praia, da mulher ali, numa casa, com o cachorro. A partir dessa frase eu escrevi o conto, que também consta de O perfume de Roberta, e o conto gerou o romance Rita no Pomar, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2009. Portanto, a partir de uma frase, e de uma imagem contida nela, foi desencadeado um processo de escrita que gerou um romance. As imagens, sobretudo as ambientais, são pontos fortes na minha criação. Há imagens que se apoderam de mim, como uma força incontornável. Guimarães Rosa se referia à criação como uma espécie de transe. É a macumba de cada um (risos). Julio Cortázar falava que alterava o regime normal da consciência na hora de criar. Existem momentos na criação que são mediúnicos mesmo. Talvez aí entre o mistério da criação.

PET: Você acredita na inspiração?

Rinaldo de Fernandes: Eu acredito, não da forma romântica, da criação como um sopro divino, mas como um processo que envolve inspiração e transpiração – porque literatura é forma, resulta das operações com a linguagem. Eu acredito que existe um impulso, algo que é uma motivação inicial, e que é sempre (ou quase sempre) imponderável. É claro que depois entra a operação com a linguagem – operação racional e exaustiva. Às vezes eu passo uma semana, e até mais, tentando resolver uma frase, um parágrafo de um texto meu. Eu sou extremamente artesanal com a escrita. Sei que se você consegue juntar o momento da inspiração com o do artesanato você faz a obra.

PET: E os seus personagens? Como eles surgem?

Rinaldo de Fernandes: No caso da Rita, como já disse, foi a partir de uma imagem, mas existem outras formas. Eu tenho um conto, intitulado “Negro”, que virou um curta (ainda em fase de conclusão) dirigido por um cineasta de João Pessoa. Eu escrevi esse conto quanto morava em Fortaleza. Numa palestra na Universidade ouvi um depoimento de um senhor, um negro, que havia passado num concurso público e que ainda não tinha sido chamado. Ele estava desconfiando que havia preconceito. A partir daí, eu escrevi o conto “Negro”, e o escrevi com muita raiva, com revolta. Mas é uma história contada sem piedade, até porque o contista tem que ser impiedoso – ninguém faz literatura com piedade. Quando vou construir um personagem eu não o faço com piedade, não sou franciscano, porque a verdadeira literatura é impiedosa.

PET: Além de escritor, você também é professor de Literatura e Doutor em Letras. Acha que o ofício de educador o influencia no trabalho com a escrita?

Rinaldo de Fernandes: Eu também sou crítico e até já escrevi sobre isso, sobre os escritores que ensinam, na minha coluna “Rodapé”, que publico há cerca de 7 anos no jornal Rascunho, de Curitiba, e no Correio das Artes, de João Pessoa. Muitos escritores brasileiros da atualidade são ou já foram professores universitários, como é o caso de Milton Hatoum, Cristóvão Tezza, Affonso Romano de Sant’Anna, Silviano Santiago, Nelson de Oliveira, Tércia Montenegro, entre outros. Cito-os para dizer que os dois ramos não são incompatíveis. No meu caso, o criador é muito beneficiado pelo professor. O meu material de professor, de uma forma ou de outra, eu canalizo para a minha produção, não só crítica. É um saber que aproveito enquanto criador. Não quero dizer com isso que você precisa ser professor de literatura para ser escritor, mas que são atividades perfeitamente compatíveis e que uma pode contribuir para a outra.

PET: O Rinaldo professor pesa na hora de escrever?

Rinaldo de Fernandes: Não, o professor não pode ser tão impiedoso ou mesmo canalha (risos) como o escritor. O registro literário é, como eu já falei, impiedoso. Na sala de aula, eu preciso de um padrão para desenvolver o trabalho com os textos. Como professor de literatura, sou sobretudo um intérprete. Daí precisar ser mais objetivo, argumentativo – e utilizar um padrão de linguagem, em princípio, mais culto. Mas na hora da criação, por estar na pele (e na linguagem) dos personagens, eu preciso me revestir de outro padrão, de outro regime. Meu conto “Confidências de um amante quase idiota”, que também está em O perfume de Roberta, tem um personagem bastante canalha, machista, e eu, ao que tudo indica, não tenho nada a ver com ele. Mas, na hora de escrever, tive que estar na pele dele e de toda a cafajestice que ele possui. Portanto, como escritor, tenho que tirar essas amarras morais e ir atrás daquilo que a vida tem sobretudo de imoral, de injusto, de imperfeito. A arte não é imoral, a vida é que é imoral. Eu, neste momento, tenho um projeto no twitter [@Ufernandes], onde posto um microconto todo dia. Alguns dos meus alunos me acompanham, comentam esses microcontos. Mas eu vou logo explicando: “ali é o escritor, não é o professor”. Os registros são diferentes. Se você escrever com moralismos não vai atingir o âmago da literatura. Com moralismos você sequer vai ler Madame Bovary (risos).

PET: Qual é o seu posicionamento sobre a Literatura nas escolas?

Rinaldo de Fernandes: O ensino de literatura se prende muito aos estilos de época. O aluno é levado a decorar as características desses estilos e a ler fragmentos de alguns autores que os representam – e pronto, está resolvido. Isso é uma grande falha. É preciso tornar o ensino de literatura mais contextualizado, vívido. Se você pega sonetos satíricos do Gregório de Matos e os compara com os de um poeta da atualidade (Glauco Mattoso, por exemplo), operando portanto dois contextos, o do Brasil colônia e o do Brasil contemporâneo, consegue ter uma ótima aula de literatura. Os alunos vão gostar desse tipo de comparação. Vão se reconhecer ao identificar, no processo, o contexto em que eles vivem. Se você, além da contextualização, liga a literatura a outros textos, temas ou disciplinas, consegue torná-la muito mais interessante em sala de aula. Não existe coisa mais prazerosa do que trabalhar um conto de Machado de Assis em sala de aula. Desde que seja uma leitura aprofundada, com critérios, operando relações. O ensino da literatura demanda criatividade e informação por parte do professor.

PET: Existe uma discussão sobre o que é a Literatura. Você, professor, Doutor e escritor, o que pensa sobre isso?

Rinaldo de Fernandes: Creio que essa discussão não interessa tanto ao escritor como ao professor. O professor precisa começar o seu trabalho entendendo, de algum modo, o que seja a sua disciplina. A literatura integra as artes e um texto literário se encerra formalmente (embora não exclusivamente) num dos três gêneros: o lírico, o épico (narrativo) ou o dramático. Em qualquer dos gêneros em que o autor escreve, precisa se utilizar, em grau maior ou menor, de ficcionalidade. Ou seja, a literatura é produto, em maior ou menor grau, do imaginário, da fantasia do escritor. Além disso, ela se empenha, para dizer mais ou menos como Antonio Candido, em interpretar esferas da nossa realidade.

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